Webinar «A Medicina e a Esperança» foi momento único de partilha

O que esperamos da esperança? Qual o segredo? Estas e outras perguntas foram refletidas a 28 de maio. 

A abrir o webinar realizado sobre o tema «A Medicina e a Esperança - O que esperamos da esperança? Qual o segredo?», realizado a 28 de maio, o padre Miguel Cabral, assistente espiritual nacional da AMCP, disse encontrar semelhanças entre as vocações de padre e de médico, por ambas "darem possibilidade da abertura de horizontes à transcendência, a Deus”.

Para o sacerdote, que referiu vários documentos pontifícios na sua reflexão, a vida do ser humano “deve estar assente, ancorada, na esperança do céu, na esperança da eternidade”.

“Mesmo com tantos recursos médicos, muitas vezes os doentes estão desenganados com a medicina. Como fazer naquela doença que é incurável, naquele cancro que vai avançando inexoravelmente apesar do tratamento, ou daquela depressão, daquela situação neurológica que agarra uma pessoa a uma cama e que traz consigo tantas limitações?”

Ao lançar a pergunta, o sacerdote respondeu que nessas situações de maior desesperança e sofrimento o médico deve abrir os horizontes do doente para algo maior. “Convidava os médicos, caros colegas, a terem na vossa vida o compromisso sério por transmitir a verdadeira esperança que não engana, a esperança em Deus; a sermos nas nossas vidas pessoais e profissionais transparência de Deus”, disse.

Isso significa “sermos capazes de dar às pessoas ao nosso redor um olhar de eternidade, um olhar vertical, para Deus”, algo que pode concretizar-se de vários modos na atuação do médico. Em primeiro lugar, referiu, trabalhar “com a maior competência clínica de que sejamos capazes, porque o que os doentes esperam de nós em primeiro lugar é competência clínica, não são Ave Marias”.

Outro meio de transmitir esperança, referiu, é “vivermos a caridade com os colegas, com a equipa clínica, sermos bons testemunhos de Deus; que a nossa vida remeta para o sentido transcendente”.

Junto dos doentes, o desafio do médico é o de “transmitir o sentido mais profundo para as suas vidas”. “Porque acreditamos firmemente em Deus e na Sua presença na História, devemos transmitir-lhes aquilo em que acreditamos”, disse.

 

Maria João Lage, pediatra e neonatologista no Hospital Dona Estefânia, com um trabalho dedicado em exclusivo ao cuidado e tratamento das crianças que nascem com problemas de saúde, apresentou na sua reflexão dois pontos de vista: no primeiro a reação do médico e das equipas médicas “diante da queda total da esperança” dos pais e das famílias quando o bebé nasce doente; no segundo deixou uma perspetiva mais pessoal de como entende e vive a esperança nesse mesmo ambiente de sofrimento e onde o amor é a grande força.

“Trabalho nos cuidados intensivos neonatais, na unidade cirúrgica, onde a grande esperança da gravidez – até se diz da gravidez ‘estar de esperanças’ – cai por terra completamente. Recebo os bebés doentes, precisam de ser operados, têm malformações ou doenças complexas, acabados de nascer, no momento em que caiu totalmente aquilo que é a esperança da gravidez, do bebé saudável, cor de rosa, do bebé nestlé. Recebo os pais, normalmente até primeiro o pai, porque a mãe ainda está internada, no momento total da queda da esperança, da invasão do medo e do choque”, partilhou.

“Percebemos rapidamente que o contrário do grande medo é a grande esperança”, disse. “[Com a chegada de um bebé doente] Cai a esperança das coisas pequenas,  (…) o medo é o medo de nunca mais ser feliz, o medo de perder a capacidade de amar, de perder o marido ou a mulher, as mulheres têm imenso medo de perder os maridos quando os bebés nascem doentes; é o reino do medo”, exemplificou.

A esperança vem a seguir, comentou, “porque o medo não é a primeira coisa que temos no coração, também se percebe logo na primeira conversa, o medo surge porque há um grande amor que começou a nascer nos corações dos pais, por isso temos de fazer com os pais um percurso ao contrário, sair do medo e voltar ao amor”.

Para Maria João Lage, também a vice-presidente da AMCP, “a maior esperança que temos é a certeza de que somos amados desde que nascemos, toda a vida e para a eternidade; a nossa grande esperança é o amor de Deus que nos é dado e que nunca nos é tirado”.  

Outra desconstrução que a médica entende que deve ser efetuada é equivaler o mal ao sofrimento. “O mal não é o sofrimento, o mal é a mentira, é a ausência de significado ou o significado errado sobre a vida. O amor que permanece no coração mesmo no grande sofrimento é a grande esperança”.  

 

A terceira oradora convidada, Isabel Galriça Neto, partilhou a sua experiência de trabalho como médica paliativista e a sua vivência pessoal como “doente oncológica abençoada pela esperança”.

Na sua apresentação, que intitulou «A esperança, uma alavanca na doença avançada e no sofrimento”, Isabel Galriça Neto começou por dizer que em fim de vida sofrem “crianças e idosos, não são apenas os idosos, como se faz pensar", e que os doentes sofrem porque “perdem a esperança, aludem a perder a dignidade, perdem o controlo sobre aquilo que lhes está a acontecer ou são vítimas de tratamentos que não desejavam e que são infelizmente um mal, porque é preciso falar também da obstinação terapêutica”.

“Não é tolerável ter as pessoas em sofrimento, mas os cuidados paliativos intervêm em todas as dimensões da pessoa”, não apenas no sofrimento.  Por isso mesmo, a médica considera que não se pode “reduzir a intervenção dos cuidados paliativos à redução dos sintomas físicos”, como algumas correntes defendem.

“Nós não estamos a tratar fígados, pulmões, (de níveis de) sódio, potássio, como infelizmente e de uma forma redutora vamos continuando a assistir; estamos a tratar pessoas que sofrem, e que sofrem como um todo.”, disse.

“As questões da desesperança vão muito além de um prognóstico”, dos sintomas, e nesse sentido, “a promoção da esperança faz sem dúvida parte das nossas ferramentas nos doentes crentes e nos não crentes”.

“Nós em paliativos todos os dias trabalhamos com a esperança e é impossível não o fazer com esta ferramenta poderosa que é a espiritualidade, que nalguns casos se cruza com a  religiosidade, embora não em todos”, testemunhou a paliativista.  

 “A esperança é uma expectativa positiva de atingir um objetivo, e podem existir muitos. A promoção da esperança irrealista - por vezes a cura, ou dizer que o doente vai ficar bem quando isso não é viável - é qualquer coisa que não faz parte dos cuidados paliativos”, disse a médica, que qualifica as atitudes de “mentira ou infantilização” do doente por parte de alguns médicos menos preparados como “falha ética”.

“A promoção da esperança através da espiritualidade deve também fazer-se junto dos doentes que não têm fé. (…) A esperança realista para alguns de nós, os crentes, é a de atingir o céu, a esperança maior; de qualquer forma há outras esperanças”, como “o casamento do filho, o despedir-se dos filhos pequenos, viver o Natal.  A esperança realista, mesmo quando não existe cura, é a esperança de cada dia e deve ser fomentada nestes doentes”.

Daí a necessidade de “fazer a pessoa viver os seus objetivos”, de ter pequenas metas na sua vida e “ajudar a pessoa a entender também como pode projetar-se quando cá não estiver, a deixar o seu legado”. 

“Quem reduz a intervenção e cuidados paliativos a umas prescrições e utilização de morfina tem um enorme desconhecimento sobre aquilo que é preciso fazer e ter como competências para intervir nas várias dimensões do sofrimento”, apontou.

Da sua experiência profissional e como doente oncológica, Isabel Galriça Neto defende que os médicos que lidam com situações de fim de vida, a par da formação técnica, devem ter formação nas áreas da espiritualidade, devem aprender a comunicar com o doente, ser empáticos, compassivos, a ter consciência da dor que as pessoas sofrem. "Devemos preocupar-nos também com as questões e razões da desesperança nos doentes vulneráveis e em fim de vida, pois essa leva a algumas manifestações de desejo de morrer - que não são o mesmo que pedidos de eutanásia - e que estão frequentemente associados a solidão; é oscilante, mas carece da devida orientação".

“É preciso ultrapassar a ideia de que as doenças são castigo de Deus. A esperança de que Deus nos ama é muito realista. (…) Oxalá a esperança seja realmente âncora, que dê estabilidade, solidez, mas também seja alavanca, que impulsiona e dilate horizontes”, disse Isabel Galriça Neto, ao descrever que “o médico paliativista não ajuda a morrer, ajuda a viver”.   

 

Publicado a 02.06.2025