JOSÉ DE PAIVA BOLÉO-TOMÉ / JANEIRO DE 2020

Esta "Entrevista (de)Vida" foi, sim, uma entrevista/conversa, mas, e sobretudo, pretendeu ser uma homenagem ao director da revista oficial da AMCP, "Acção Médica", nas quatro últimas décadas, o professor José de Paiva Boléo-Tomé.

Permitimo-nos sintetizar do vasto currículo profissional do professor doutor José de Paiva Boléo-Tomé, inscrito na Ordem dos Médicos com o número 8008, alguns elementos.

Fez internato de Cirurgia Geral nos H. C. L. (1961-1966),especialista em cirurgia geral e cirurgia plástica, reconstrutiva e maxilo-facial (1967), Director do Serviço de Cirurgia Reconstrutiva e Maxilo-facial em 1971, por concurso público nacional. Professor Catedrático jubilado (cirurgia, U.L., 2001); leccionou na Universidade Nova (Faculdade de Ciências Médicas – Cirurgia, Deontologia – 1976-1981) e na Universidade de Lisboa (Faculdade de Medicina Dentária – Cirurgia, História da Medicina, Deontologia – 1981-2002).

Na Ordem dos Médicos foi membro do Conselho Disciplinar Regional, e do Conselho Nacional de Deontologia, e representante da Ordem mo Infarmed.

Foi Presidente da Comissão dos Internatos Médicos (Região Sul – 1986-1992) e da Comissão da Urgência na área da Grande Lisboa. É Membro de várias Sociedades Científicas nacionais e estrangeiras; membro da Sociedade de Geografia, da Academia Portuguesa da História, da Sociedade Histórica da Independência de Portugal.

Publicou mais de duas centenas de trabalhos sob a forma de conferências, artigos, comunicações, editoriais, livros, abrangendo as áreas Científica (99), da Educação, da Bioética, da História da Medicina e de debate ideológico. De entre os livros, salientam-se «PEDRO HISPANO PORTUGALENSE» (Novembro 2007), de que foi organizador, coordenador e co-autor, e «UM OLHAR PARA PORTUGAL NO MUNDO» (Dezembro 2012) – galardoado com o Prémio Calouste Gulbenkian de História (2013), atribuído pela Academia Portuguesa da História.

A partir de 1999 foi Professor de Bioética no Instituto Superior de Educação e Ciências ( ISEC); Professor de Formação Humana, no Cursos Livres na Sociedade Histórica da Independência de Portugal; e de Formação da Sexualidade humana.  Fez preparação em Formação Familiar (Poissy – França) e trabalhou no SEDC que deu lugar ao Movimento de Defesa da Vida.

Uma curiosidade: é possuidor do «brevet» (PPA) e realizou em Moçambique vários voos humanitários (correio, alimentos, medicamentos – 1963/1964 – cerca de cento e cinquenta horas).

No caso que hoje aqui nos traz, o professor José de Paiva Boléo-Tomé dirigiu a revista de formação, ensaio e crítica «Acção Médica» desde 1976, órgão de que foi redactor desde de 1959.

 

A Acção Médica é a face da AMCP: a sua presença editorial é mesmo necessária.

Prof. Boléo-Tomé

 

 Em final de 2019, transmitiu à Direcção Nacional da AMCP a sua decisão de deixar de ser o director da Acção Médica. Com que sentimento deixa este projecto de formação e de informação?

 

Penso que lugares desta natureza não devem ser ocupados por tempo indefinido – a renovação é necessária. Foi o que não aconteceu com a direcção da revista nos últimos 20 anos, apesar dos meus esforços. É bom não esquecer que dirijo a revista há 43 anos! Digamos que houve uma certa preguiça…

 

É com esperança e confiança que entrego esta responsabilidade – esperança numa melhor qualidade e numa melhor capacidade de intervenção, em tempos que se caracterizam por uma quase fuga aos valores espirituais – e confiança no dinamismo de uma nova equipa que leve a revista e o que ela representa para o mundo da formação humana. A revista é a face da Associação: a sua presença editorial é mesmo necessária.

 

Voltemos ao início. Esteve nos momentos iniciais da revista Acção Médica? Pode contar-nos como foram?

 

Os momentos iniciais são anteriores, uma vez que a revista nasceu em Junho de 1936. O Dr. Paiva Boléo, meu tio, foi o criador e depois seu director, por ordem pessoal do Sr. Cardeal Cerejeira, renovada por todos os Patriarcas de Lisboa até ao seu falecimento em 1976. A Direcção da revista dependia assim, directamente, do Senhor Patriarca.

 

O aparecimento do meu nome na direcção de «Acção Médica» ficou a dever-se primeiro a um pedido do Dr. Paiva Boléo, já doente(1971), aceite pelo Senhor Patriarca; mas, a meu pedido, eu seria só director adjunto. Com o falecimento do Director, em 1976, assumi a direcção efectiva nesse mesmo ano, a pedido do então Presidente da AMCP, Prof. Dr. Daniel Serrão, em 1976. Tinha entrado na equipa editorial em 1959, como redactor responsável pelo acompanhamento do trabalho tipográfico, situação que se mantivera até 1971.

 

Nessa altura levantaram-se problemas legais relacionados com a propriedade da revista: o proprietário falecera, a Associação dos Médicos Católicos não tinha personalidade jurídica, a revista não pertencia ao Episcopado, como fazer? De novo foi encontrada uma solução provisória que aceitei contrariado: seria eu o proprietário(!!). E assim foi até conseguir, finalmente, “vender” a revista à Associação. Imagine: fui proprietário da «Acção Médica» entre 1978 e 1996, dezoito anos!

 

Houve porventura algum número, ou temática, que lhe tivesse agradado de modo especial desenvolver?

 

Posso dizer que cada edição é um desafio. Mas talvez saliente o que foi editado com base num congresso, promovido pela AMCP, realizado na passagem do milénio. O título foi «A Saúde e o Poder» (Junho 2000). O Congresso teve a colaboração de pessoas do mundo do pensamento, que terão sem dúvida contribuído para o seu extraordinário êxito.


Igualmente, poderei citar uma edição bastante mais antiga, resultante da co-organização do Encontro Internacional «Sociedade Moderna e População» realizado em Lisboa (1973 e 1974), poucos meses antes da revolução de Abril. O êxito foi invulgar e os textos foram editados em volume pela revista «Acção Médica». A edição, de 2000 exemplares, esgotou-se em pouco tempo.

 

Mais recente foi a edição dedicada à eutanásia, em que foi possível incluir as declarações de nove religiões diferentes, iniciativa conseguida pelo Grupo de Trabalho Inter-Religioso «Religiões/Saúde» (2018). «Acção Médica» foi o documento de divulgação desse Trabalho, na sequência da sua apresentação pública, na Academia das Ciências.

 

Nestes anos de publicação, a revista deve ter um conjunto de histórias interessantes, pela positiva, pela valorização do meio de comunicação ou até pelo rocambolesco. Pode partilhar algumas?

 

Talvez seja documentalmente interessante, talvez mesmo rocambolesco, o que se passou num belo dia de início de Verão, cerca de 1978. Preparava-me para saír para o Hospital quando recebo um telefonema do porteiro do Patriarcado, com quem eu conversava sempre um pouco. Nesse dia, porém, o assunto era grave. A revista dispunha de uma sala no anexo da residência patriarcal, que pertencia à Conferência Episcopal, que a cedera à Associação dos Médicos Católicos. O telefonema, aflito, dizia apenas isto: «estão a despejar tudo o que está naquele anexo, onde o sr. Dr. costuma ir. Dizem que ainda vão fazer uns escudos com o que estão a tirar de lá». É claro que o Hospital ficou para traz e fui … quase metade já estava na camioneta! Lá consegui que fosse suspenso o despejo e “revertido” o lugar dos livros e revistas. Procurei alguém que me explicasse o que se passava e soube: tinha havido uma ordem da Conferência Episcopal para esvaziar todas as salas que não fossem utilizadas, porque iam entrar em obras. Tinham-se esquecido de avisar que aquela sala concreta era da «Acção Médica», cedida pela CEP. E fora mesmo arrombada, porque estava bem fechada à chave.

 

Mas houve um outro facto que merece ser contado. No início de 1976 apercebi-me que alguém, na tipografia, andava a mexer no “adressograph” que se encontrava na impressora para a expedição. Um tipógrafo que me tinha acompanhado desde o início, na minha aprendizagem de composição e impressão, avisou-me: «olhe que a sua empregada anda a fazer qualquer coisa com os “adreços”». E soube; era verdade. Andavam a ser copiados para uma força política bem conhecida. A empregada, que tinha sido contratada para ajudar no arquivo da revista era militante. O problema tinha que ser resolvido com urgência. Primeiro: destino da revista – só podia ser um, Porto. Entrei em contacto (clandestino) com o Dr. Bianchi. Que sim! Viria ele, talvez com um filho, para levar todo o material para o Porto. E foi no alto do Parque Eduardo VII, numa madrugada de primavera que aconteceu. Eu tinha carregado o meu carro, com a ajuda do tal tipógrafo, na noite anterior; ali se fez o trasbordo e, pode-se dizer mesmo, ali começou um trabalho editorial que revelou a capacidade e a qualidade humana de um homem excepcional, o Dr. Bianchi de Aguiar, com o apoio invulgar de sua esposa, a Srª D. Maria Francisca. E a revista não voltou a ter problemas, enquanto foi possível contar com eles. O episódio dá-se agora a conhecer, e tem uma referência na própria revista: a mudança de tipografia – de Ramos, Afonso & Moita (Lisboa), para Tipografia Nunes (Porto).

 

boleo tomé 3

 

A revista encabeçou, digamos assim, algumas lutas importantes da AMCP, enquanto órgão oficial da Associação. Quais destacaria?

 

A revista, como órgão da Associação dos Médicos Católicos, não encabeçou mas acompanha sempre o melhor que pode, todas as iniciativas da Associação, dando-lhes visibilidade, e colaborando activamente sempre que é possível ou necessário. Mas gostaria de destacar temas como o Aborto, a Eutanásia, o Exercício da Medicina, a Ética na Saúde e na Sociedade, a Ideologia de Género.

 

Posso ainda salientar um facto que teve enorme repercussão na época em que aconteceu – uma conferência do Prof. Egas Moniz na Sociedade de Ciências Médicas defendendo a inseminação artificial, assim como tudo o que era feito em Exeter para o melhoramento das raças (clínica neo-maltusiana). Isso gerou comentários muito correctos e bem fundamentados, feitos pelo Dr. Paiva Boléo que impressionaram pela coragem e qualidade (1945). Mas criticar Egas Moniz era quase um sacrilégio!...


Sente que, de alguma forma, este trabalho que desenvolveu na área da comunicação o valorizou como pessoa (e como médico)? 


A minha primeira experiência como redactor tive-a ainda estudante, na Universidade de Coimbra, quando fui convidado para o corpo redactorial do jornal académico «Via Latina». Era uma secção formativa. Seguiu-se, quase logo, a redacção da revista «Estudos», editada pelo C.A.D.C. (Centro Académico de Democracia Cristã). É claro que estas pequenas experiências marcam sempre, uma vez que entramos num mundo difícil e pouco conhecido – o mundo da edição periódica, com um grande espaço de intervenção.

 

Posso dizer que foi para mim um privilégio acompanhar o trabalho tipográfico, desde a antiga escrita com os “tipos” à composição informática, para além do trabalho de redacção ou de direcção. Mas foi igualmente um privilégio ter podido acompanhar, passo a passo, a preparação e a publicação de uma revista que tem e terá sempre um lugar insubstituível na história editorial. E sem dúvida que, sendo a leitura e apreciação de toda a colaboração, uma competência do Director, foi para mim uma enorme mais valia.

 

Em jeito de balanço, sente que a "Acção Médica" cumpriu a sua missão?

 

É uma pergunta com resposta bem difícil, ou mesmo impossível: é que a apreciação da revista e da sua presença no mundo da edição e do pensamento não pode ser feita por nós, os que a trabalham. No entanto, penso, com tristeza, que a valorização da revista pelos associados tem sido demasiado curta ou mesmo indiferente. Esta é mais uma razão para que surja uma nova direcção que “active os desactivados”.