- Ana Luísa Castro - Junho de 2019

- Ana Luísa Castro - Junho de 2019

Natural de Guimarães, onde nasceu há 35 anos, a irmã Ana Luísa deixou a freguesia de S. Paio, mesmo no centro da cidade-berço de Portugal, para residir em Fátima, uma cidade central no mundo católico.

Estudou Medicina na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Professou votos perpétuos como freira da congregação religiosa Aliança de Santa Maria, em 2017, precisamente no Centenário das Aparições de Fátima. Dois anos antes, em 2015, concluíra a licenciatura em Ciências Religiosas pela Universidade Católica Portuguesa/Lisboa.

Há poucos meses tem um novo desafio pela frente, o de diretora do Posto de Socorros do Santuário de Fátima, onde um grupo de médicos associados da AMCP presta serviços de voluntariado.

 

"Precisamos que Deus nos toque e nos cure constantemente
e, assim, recrie em nós o homem novo."
Ana Luísa Castro 

 

 

A vocação religiosa nasceu primeiro que a decisão de ser médica?

Desde que me lembro, creio que sempre me acompanhou uma grande sensibilidade ao sofrimento dos outros, e cedo percebi que o que eu queria mesmo era ser médica. Tinha em mente uma certa pretensão em ser aquela pessoa que cura, que resolve os problemas, que salva, na vida de outros. Quando via, na televisão, as imagens de países em guerra, sonhava em, um dia, prestar apoio em campos de refugiados ou situações de guerra ou desastres naturais.

Nesse sentido talvez ambas as vocações tenham nascido simultaneamente ainda que de forma escondida. A medicina foi-se tornando cada vez um objetivo sério a cumprir e o desejo de algo mais permaneceu latente. Mantinha o ideal da medicina perante família e amigos e a relação com Deus mais como algo privado na minha vida.

Dois grandes acontecimentos foram encaminhando a minha história no rumo da vida religiosa. Antes de entrar na faculdade decidi que queria descansar num convento por uma semana para me preparar para tudo o que viria. Essa semana num convento de Carmelitas Descalças marcou-me profundamente pelo silêncio e pela oração; será que Deus poderia quer um caminho assim para mim? Entrei na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto sem responder a essa questão.

No segundo ano, no Verão conheci uma jovem com quem foi crescendo uma grande amizade, até que um dia ela dá-me a notícia, ia entrar numa congregação religiosa, a Aliança de Santa Maria. Pensei que tinha enterrado para sempre essa questão dentro de mim e, de repente, o testemunho dela traz tudo ao de cima.
Depois do curso terminado, depois de muita oração e discernimento, entrei na Aliança de Santa Maria em 2008.


O que têm de semelhante estas duas missões na Igreja e no Mundo, talvez o sentido de entrega pessoal e ao próximo como desafio diário?

Creio que a medicina e a vida religiosa partilham de forma muito próxima aquilo que é esse desejo de nos entregarmos e de ajudarmos a fazer chegar a salvação a cada casa, a cada pessoa.

Alguém dizia que a atividade em que Jesus passa mais tempo durante a sua vida histórica foi a curar doentes. A cura é talvez o gesto mais necessário dos dias de hoje e, se calhar, de sempre. Precisamos que Deus nos toque e nos cure constantemente e, assim, recrie em nós o homem novo. Nesse sentido o cristão e o médico vivem numa procura diária de semelhança com Jesus, o médico dos corpos e das almas. Procurar curar o outro na sua fragilidade, aliviar o seu sofrimento, resgatar sentido para a sua vida implica ter como pano de fundo da vida as mesmas atitudes do bom samaritano que foi capaz de ver, de se compadecer e de agir.

Em 2012, quando fui ao Juramento de Hipócrates juntamente com todos os meus colegas médicos da zona centro, senti uma profunda alegria quando todos juntos juramos: "Eu, solenemente, juro consagrar minha vida ao serviço da Humanidade.” Para mim, aquela frase teve uma ressonância muito profunda no meu coração.


Está em Fátima há poucos anos e integra uma congregação que tem como carisma a oração e a vivência mariana muito centrada em Nossa Senhora de Fátima, a Aliança de Santa Maria. Antes de se decidir seguir o caminho de religiosa, conhecia a história e a mensagem de Fátima e a congregação a que pertence?

Sou natural de Guimarães, onde a nossa Congregação tem uma casa. A minha catequista, na altura, era a superiora-geral da Congregação e recordo-me de um passeio em que ela nos levou a Fátima em que chegámos a conhecer uma das casas da Aliança de Santa Maria. Recordo-me também da explicação que nos deu acerca da devoção dos cinco primeiros Sábados. Para além disso, desde os 14 anos que tinha por hábito rezar o terço todos os dias sozinha, desde que a minha avó me tinha trazido de Fátima um pequeno livro com a história de Jacinta Marto.

Mas posso dizer que comecei a conhecer mesmo a Congregação quando em 2004 comecei a visitar a minha amiga que tinha entrado nesse ano. Tratava-se de uma Congregação pequena, jovem, com um estilo muito familiar, em que sentia que todas eram muito próximas e alegres. Percebi desde logo que uma das principais características da Congregação era um amor muito forte a Nossa Senhora como aquela Mãe que nos leva até ao Senhor e vai tecendo a nossa união com Ele. A Mensagem de Fátima estava também muito presente, falava-se de Fátima com um amor e entusiasmo únicos.

O meu percurso nos primeiros anos foi precisamente marcado por um enamoramento por esta Mensagem que temos como missão que brota do nosso carisma: “a nova evangelização através do Coração Imaculado de Maria, com esse rosto específico da Mensagem de Fátima”.


Recentemente assumiu a coordenação do Posto de Socorros do Santuário de Fátima, um local com uma especificidade muito própria. Como acolheu este novo desafio que lhe foi lançado?

A coordenação do Posto de Socorros no Santuário é um desafio muito recente, desde setembro de 2018, que ainda estou a conhecer e a explorar. Quando surgiu o convite o sentimento foi um pouco bivalente, por um lado de grande alegria porque é sempre muito especial trabalhar ali na casa de Nossa Senhora e, por outro lado, de algum receio porque tratava-se de um tipo de trabalho no qual tinha muita experiência (coordenação de um serviço). A meu ver, o tipo de serviço que se presta no Posto é muito belo, pois oferecemos aos peregrinos esse apoio que lhes permite fazerem uma experiência de Fátima como esse lugar de cura, de encontro, de acolhimento. Sinto que, muitas vezes, o meu principal instrumento de trabalho são os meus ouvidos e a forma de curar o sorriso e a palavra.

Vejo pessoas de diferentes partes do mundo, por vezes tenho de usar o Google Tradutor para comunicar com doentes, às vezes comovo-me com as histórias que oiço e sinto-me sempre uma parte desse Coração de Maria que está aberto para todos. Vou testemunhando que a presença dos médicos voluntários no Posto é muito importante, não só porque de outra forma não seria possível assegurar o funcionamento do Posto aos fins de semana, mas também porque o gesto de abdicar de um fim-de-semana de descanso para estar a servir gratuitamente quem ali vai toca verdadeiramente o coração dos doentes.

Alguma ideia que pudessem ter de que os médicos só querem ganhar dinheiro ou fazer carreira, ali fica desfeita, para além de que também assim podem experimentar o amor gratuito de Deus que quer fazer sempre isso connosco, vir gratuitamente curar-nos das feridas.


Na sua profissão, por ser religiosa, freira, jovem, alguma vez se sentiu menos - ou mais - apoiada, observada de forma diferente por parte de colegas ou dos pacientes?

Durante o internato médico de Medicina Geral e Familiar, que fiz em Leiria, realizei alguns estágios no Centro Hospitalar de Leiria onde tive oportunidade de passar nos vários serviços e conhecer melhor toda a dinâmica do trabalho a nível hospitalar. No final do internato estive a exercer como médica de família no ACES Pinhal Litoral como recém-especialista já com toda a autonomia.

A maioria dos meus colegas não eram católicos praticantes e por vezes tínhamos discussões acerca de algumas das temáticas mais polémicas. É verdade que poucos compreendiam a minha escolha e tudo o que isso implica de pobreza, castidade e obediência, mas senti algumas vezes que o facto de saberem que era religiosa era uma porta de entrada para poderem abordar temas como a fé, a relação com Deus, a vida de oração, aspetos dolorosos da vida, enfim, senti que por vezes encontravam em mim alguém com quem podiam falar e isso trazia-me muita alegria.

Com os doentes por vezes senti também que sentiam que comigo podiam abordar temas de práticas religiosas ou vida espiritual sem medo. De qualquer forma, a consulta médica é sempre um momento em que o utente se encontra a expor a sua fragilidade, a sua dor e, portanto, momentos em que a fé, a esperança, a certeza de que Deus está ainda é mais importante. Lembro-me também de algumas situações caricatas como os utentes que me perguntam se me devem tratar por doutora ou por irmã ou uma senhora que, já a sair da consulta, volta-se para trás, respira fundo, como se estivesse a ganhar coragem e me fosse dizer algo muito embaraçoso, e me pergunta: “Posso fazer uma pergunta? É freira?”.


É recém-associada da Associação dos Médicos Católicos Portugueses, seja bem-vinda! Como conheceu a AMCP?

Conheci a AMCP ainda na Faculdade sobretudo devido à revista “Acção Médica”, mas nunca me cheguei a inscrever. Agora, como coordenadora do Posto de Socorros, descobri que são os médicos da Associação que aí fazem o voluntariado aos fins de semana. O contacto começou a ser mais frequente por esta relação da Associação com o Santuário de Fátima e, sobretudo, o contacto com voluntários e membros da direção foi-me despertando para a importância de, como médica e como católica, estar inscrita.


A AMCP tem visto crescer nos últimos tempos o número de associados estudantes. Que mensagem pode deixar aos futuros médicos católicos no exercício da sua profissão enquanto profissionais católicos?

Penso que a melhor mensagem que posso deixar é que nunca se esqueçam de que o melhor testemunho que podemos dar aos nossos colegas e aos doentes passa por sermos pessoas próximas e com desejo de ouvir, acolher e ajudar com toda a dedicação e amor de que formos capazes, enquanto permanecemos firmes na fé e na esperança a que fomos chamados.